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segunda-feira, julho 14, 2003

Voltei agora a casa. Tudo é estranho a partir deste momento, quando se olha e a parede sustém marcas de um
cristo pegado à parede. É como que se essa presença que não quero ter no meu quarto se estagnasse e sobre ele se vissem outras coisas que eu não consigo ver, que ninguém que trago ao meu quarto consegue ver. Tenho o cigarro no cinzeiro, agora está no meu dedo e impede-me de escrever. Arroto pelo lanche. Ponho o cigarro na boca e empino a face para cima, para não ser importunado pelo fumo. Visões estranhas saem de dentro dele, homens e mulheres estranhos, pintados, como uma névoa no dia de hoje que chove. A estrada estava molhada - recordo-me - e já nem sei como vim aqui parar. Lembro-me de tudo, de tudo o que disse ou o que fiz e já não sei mais porque o fiz, nem sei mais o que fiz ou o que ficou por fazer. Existe algo que ficou por fazer, existem palavras que deixei no banco de trás daquele carro, os estofos quentes, a minha pele suarenta contra o tecido, transpirava, espirava, inspirava, morri. Deixei-me para sempre enterrado naquele banco, deixei-me como o sabor de tabaco na boca, como o cheiro do orgasmo que se cola ao sexo e ao umbigo depois de te ter desejado, mais e mais. Não sei mais o que pensar depois de tudo isso. Este é o primeiro dia e já não sei o que fazer com ele, ou o que ele pode fazer comigo. Coço a barba que cresce - fi-la há dois dias, estava rente, quase que não se via, na altura, mas agora já cresceu - agora já se nota. E quando lhe passo a mão, é como se me acariciasse, como tu fazias dantes, antes dos nossos corpos renegados se terem rendido ao silêncio que rodeava aquele espaço, aquele banco de trás daquele carro. Estava calor, apesar de chover, apesar do céu enevoado. Apesar das nuvens, apesar das pingas de água que caíam à nossa frente, apesar da minha mão molhada na tua, apesar de muita coisa. Daqui a algum tempo, quando eu souber que partiste, não mais estarei aqui. Partirei, também, para onde não sei. Será como nas películas, como nas fotografias que não tirámos quando passámos por aquele Photomatic, onde iríamos preservar-nos como nunca antes o fizeramos - e como não chegámos a fazer. Passámos rapidamente, recordo, como se fosse quente aquele banco onde nos podíamos ter sentado, onde podíamos ter olhado o flash, o quarto flash antes de ficarmos ali, eternizados, eternamente juntos, patéticos, dizias. Mas eu nunca ouvi o que tu dizias, e por isso estávamos ali. Por isso passámos rapidamente, a luz a diminuir e nós a andar para cima, para a estação, sem sequer olhar para aquele máquina. E sim, o meu rosto queimou-se naquela máquina. No dia seguinte fui lá, sozinho, pensando que tu estarias onde não sei, mas não ali. Fui lá sozinho, suportei o flash sozinho, eternizei-me sozinho, e tu morreste. A minha mão pegava na tua, não ali, mas pegava na tua. Os meus lábios estavam mordidos, pendiam deles pequenos frémitos que aqui deixaste antes de ires para onde não sei. Ainda hoje não sei, e já passaram tantos anos, tantos séculos, tantos dias e noites e camas e lençóis e calores e frios. Tudo isto passou, tu não.


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