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segunda-feira, março 15, 2004

A pior prisão para o corpo é a de estar circunscrito a um quarto no qual nada há a fazer. Sei que o dia está sóbrio, apenas as palavras trazem consigo a ressaca dos dias ininterruptos. Tenho humidade presa às mãos e os gestos são maquinais e automáticos: o retrato de tudo o que deixaste. A casa é hoje uma ruína que nos apela à memória. E diziam que a felicidade era isso: apenas momentos, todos juntos. E as noites chegam umas após as outras e, ao olhar para trás, ao sentir a pele colar-se aos lençóis frios, sei que não chegarás. Já muitas vezes te vi distante, e nem mesmo assim me mexi daqui. Continuo estagnado, as mãos a desenharem círculos vazios e infantis no espaço em volta, e as palavras a trazerem dores adjacentes, enjoos matinais e o acordar repentinamente. Esse acordar súbito, com os olhos-semi-fechados-e-doentes. Nada trago comigo à excepção da infância que se me enraiza no caule da boca. O sorriso morre-me ainda nos lábios e a frescura dos gestos persegue-me de quando em vez: e apenas afastar-te os cabelos da fronte me alimenta o sonho que tenho de estar coberto, sentado na amurada das planícies, e sentir que lês as cartas que queimo sem que tu acordes.
Apenas conheço a razão que te traz aqui e só posso dizer-te que este espaço de confluências morrerá se os teus olhos se fecharem a ele.

A escrita morre-nos nos braços.

Em redor dos meus olhos tenho as falanges gélidas das lágrimas e dos precípicios. Sei que já terminaram as badaladas do teu relógio de parede e que a distância nos ergue muros de pessoas com os lábios gretados pela falta de luz. A citadela é hoje algo como uma sombra que me percorre as mãos. Já não existe nada de bom que te possa dar, e o sorriso largo das pessoas que partem entorpece-me os olhos e as pálpebras húmidas que nunca mais limpei, desde a última vez em que te vi: escondida a um canto de uma página.
E, por mais que espere, a nossa perfeição começou nesse primeiro dia e não mais terminou
- e sei que ainda carregas a marca do meu rosto no teu ombro nocturno.

domingo, março 14, 2004

Não sei mais esconder que a casa me refugia quando os meus sentidos entorpecem. Sei que quando a noite chega eu olho em volta e nada mais existe além das tuas fotografias e as minhas palavras. E a cada passar de hora, torna-se mais dúbia a imagem que tenho de ti: se a distância que nos aproxima me faz proteger-te então nada mais há a fazer senão seguir caminho para um onde distante que tu teimas em não perguntar.

sábado, março 13, 2004

Momento.

Não deixa de ser distante o espaço que temos entre as nossas vozes, por mais que te recorde. E só me lembro que a madrugada nos enche o peito com sons metálicos de outros países para os quais penso em partir. Eis que as mesas se tornam pequenas para tanta memória e os meus pés, ladeados pelas peles gastas e bronzeadas, apenas sabem o caminho para o teu quarto onde, em determinados momentos, me deixei nascer. Não contei todas as velas que apagámos, mas o meu abraço molda-se à medida do teu corpo. E agora que te sei inteira, a minha viagem inicia-se - algures existirá uma casa que se me abrirá e da qual não saberei sair. E construí-la-emos, com o silêncio em torno do quintal que tanto me pediste.

sexta-feira, março 12, 2004

Infância

Porquê a infância ?

Porque havia tudo , e não tinha nada.

Havia esperança sem ser com cravos em canos largos de espingardas ou

simplesmente:

havia tudo por mudar.
Dizem que a infância traz consigo mantos espessos de memórias e de lugares aos quais nunca mais iremos voltar. Mas invade-nos a ideia, ao fim dos anos, de que todas as cartas acabaram por ser esquecidas, que muitos dos rostos que se nos cruzaram na rua - que na altura se nos prenderam nas costas - neste momento nos trazem o silêncio, quando a casa por si só se mostra já vazia. O meu corpo ocupa demasiado espaço. O cansaço chega-me de uma forma despropositada, sem recados. E, de quando em vez, o silêncio instala-se-me nas mãos, como se a minha garganta pedisse água e somente o pó dos textos nos entrasse pelas narinas: e era nestes momentos que costumava ter-te a adormecer nas minhas mãos. Tentava de alguma forma disfarçar o peso do tempo nos teus cabelos; afastava-os lentamente do teu rosto como que a dissipar o passado para que as tuas pálpebras, essas, não se sentissem abandonadas pelos quadros que pintámos em dias sem data. A fundura do nosso corpo não se descobria até ao momento em que me ultrapassavas: e, sem notares, olhavas para o lado e a tua face denotava a imagem que tantas vezes se me deparou durante a noite: a de que tu acordavas, e as minhas mãos permaneciam abertas a tentar estancar a hemorragia.

Carta.

Sei que não se parece em nada com uma carta porque não pretendo dar-te notícias ou dizer o que a vida me tem trazido: apenas quero mostrar-te que, por mais vidas que tenhas, o teu corpo não será nunca capaz de medir todo o amor que se me transpira pela parte de trás do meu silêncio.

terça-feira, março 09, 2004

Não me perguntes onde estou porque aqui impera o silêncio e o frio da casa. Tenho de ti apenas o teu retrato meio-apagado que deixaste, e os dias - esses outros - já não me respondem. Sei que existe por dentro da pele um sabor estranho do tempo da nossa infância, a mesma que se nos estende nos desertos da cidade. Mas agora já é tarde e, de qualquer modo, pretendo deixar no corpo marcas de uma qualquer mágoa - em outros dias - onde as paredes não me impeçam de recordar tudo aquilo que ainda tenho de ti. Se falares comigo, responder-te-ei.