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sexta-feira, julho 25, 2003

Adeus

Todos, um dia mais tarde, outros mais cedo, diremos: a-deus. Eu digo-to hoje, porque não mais te vou ver, e ainda não te vi. Por isso me despeço de ti sem sequer teres chegado. Porque te olho onde tu não estás e vejo-te partir, rapidamente, esvanecendo-te na imagem da rua cheia de calor e suarenta, no meio de tantas pessoas que também não conheço. E por isso também te digo que já não te conheço, ou que nunca te conheci. E nunca te vi. A-deus, tu. Quem quer que sejas, a-deus, parte e faz uma boa viagem por onde quer que vás, não sei por onde mas faz boa viagem. Por onde quer que vás, parte, mas não me digas por onde ou temo que vá atrás de ti. Foste embora agora. A-deus. E acredita que nunca me despedi de ti.


Quaisquer "feedbacks" que queiram dar, safir2@hotmail.com ou por outras vias que possam conhecer.

A-deus.

quarta-feira, julho 23, 2003

Fim.

Ando à procura de alguém de quem não me lembro mais. Mas lembro-me de ti, encostada ao muro que circunscrevia o estacionamento, ali no campo das cebolas. E ali era como que se tudo estivesse em branco, como se só existissemos nós e aquele espaço, e mais nada. Porque só conseguia ver-te, com as mãos em forma de concha a tapar a cara, eu - absorto - a olhar-te. Lembro-me disso e vou esquecer tudo agora. Vou fazer com que se extinguam todos os cansaços que as minhas mãos comportam, porque se assemelham por demais às tuas. Mellancholicaly forgotten. Hoje foi um dia a mais na memória. Tentarei, noutro dia, fazer de novo o que fiz hoje, ou o que deixei por fazer. Nem os putos a correrem pela rua em busca de uma esmola me dão uma sensação de calma, de que tudo está igual, de que já é de noite e que eu estou num país que não conheço, numa cidade estranha ao meu corpo, e que não consigo adormecer. Don't say that it's over. Parto para outro lado, para outro lado da rua, para outra rua, e sigo em frente. Serei bem-vindo por lá, mais do que aqui. Vais tu partir hoje, no primeiro comboio da manhã, ainda com as nuvens sobre a tua fronte, como se os teus olhos fossem comportas da memória, como se, em ti, se congregassem milhares de idéias e de rostos, ao mesmo tempo - como uma tela desenhada até à exaustão, como um traço a mais que se cola à assinatura que colocas, religiosamente, no canto inferior direito do teu desenho. Hoje é um dia a mais para fazer tudo da mesma forma, sabendo que tudo vai ser da mesma maneira, que as coisas vão desaparecer da mesmíssima forma, lentamente, à minha frente. Dead heroe to the rescue. Os meus passos são desenhos apagados na areia da praia. Amanhã irei para lá e tu estarás não sei onde, sozinha ou acompanhada - não o saberei. Irei pensar em como estarás ou simplesmente negar-me-ei essa vontade, porque partiste, sozinha, e eu fiquei por aqui. Não te irei salvar, por mais que peças. Sempre o mesmo pensamento, sempre a mesma letargia a imaginar-te sair da estação, pessoas a chegar e a partir, nenhumas das quais chamando pelo teu nome. Como te chamas? Esqueci-me.

segunda-feira, julho 21, 2003

Bem-vindo a lado nenhum.

Aqui, onde se está, não se faz nada para além de nos sentarmos, a olhar para a rua, como se algo acontecesse por lá. Olhamo-nos, colocamos as mãos dentro dos bolsos e fingimos procurar uma chave para entrar em casa, mas não há chave, não há casa onde possamos entrar. Ficamo-nos pela porta, ainda do lado de fora, a olhar pelas janelas enquanto alguém se passeia dentro de nossa casa, enquanto vozes e risos surgem por dentro dos corredores e pensamos: "esta é a minha casa.. não é?" - e, a dada altura, começamos a reparar nas plantas que foram colocadas, uma de cada lado, em vasos iguais, cada uma de seu lado do tapete que diz "bem-vindo" e aí nos recordamos que nunca fomos benvindos a nossa casa. Surge, então, a dúvida se estaremos no sítio certo, se a rua é a certa, se não nos enganámos ao virar à esquerda e seria à direita mas não - temos a certeza de que não falhámos o caminho, de que ali é a porta certa, o tapete certo, os vasos certos, apesar de nunca os termos visto. Lemos o jornal que está sobre o tapete, a data é de ontem, os títulos já nós os conhecemos e tudo se assemelha a um replay ordinário. Ouvimos a mesma música a ecoar da janela do 4º esquerdo, vemos a vizinha que toma banho sempre à mesma hora a assomar-se à janela semi-nua, e olha-nos. Mas há algo diferente aqui. Ela olha-nos como que se não nos conhecesse, como se a nossa cara houvesse mudado, como se as roupas que trazemos hoje fossem trapos para os quais nunca nos deixariam sequer olhar. Mas sim, somos nós. Sim, estamos diferentes, mas somos nós na mesma. Os mesmos traços, a mesma voz, os dedos, a pele, a barba, tudo. Sim, somos nós, temos a certeza. Mas nesse momento, alguém surge de dentro da casa e olha-nos, a medo, como se fossemos ladrões sem saber o que roubar - se palavras se olhares - e a pessoa pergunta-nos: "O que deseja?" - respondemos então que nada, que ali é a nossa casa, que ali dentro está a nossa cama e os nosso livros, os nossos rostos e cheiros, os nossos corpos. Ouvimos, então, dizerem-nos que estamos enganados, e sabe-nos mal. Ouvimos poucas palavras, quando notamos já a pessoa que se diz dona de nossa casa se meteu para dentro, fugindo-nos ao olhar e às palavras e reparamos, aí, numa tabuleta estacada no fundo da rua: "Bem-vindo a outra cidade" e aí sabemos que estamos enganados, que aquela cidade não é nossa. Aí, parto, sem saber por que caminho, porque já não sou bem-vindo aqui.

quinta-feira, julho 17, 2003

Boa noite. 09.00 AM

Boa noite. São cerca das nove da manhã e estou atrasado para dormir. Vim pela rua, a cambalear e a tentar manter-me hirto, mas o peso da noite é demasiado grande, são muitas horas a olhar para o mesmo sítio, demasiadas horas a ver o que não deveria ter visto. Ainda não acordei hoje, sinto-me como se estivesse a ser drenado e os meus braços confirmam-no. Estou a perder-me pelas veias, um líquido esbranquiçado surge pela junção da pele e é como se o tempo fosse um movimento duradouro, quase presente, em transposição entre as mãos. E tu apareces novamente: a televisão silencia-me por momentos - estou conhecido por demais - e tu olhas-me, por entre o vidro que cortámos com as mãos, por entre as bolhas que se criaram ao prender-te. Estou demasiado cansado já, para que te possa olhar como deveria. Poderia, se fosse jovem, observar os traços do teu rosto, ver-te a tocar o cabelo para que não te importune, ou simplesmente ver-te de costas, imaginando os teus dias ainda por vir, por detrás do ombro. Cheguei cedo, hoje, e ainda não desfiz a mala. Deixei-a ficar no sítio onde cheguei primeiro. Depois, parti, como se nada houvera acontecido. E tu viste. Através do vidro, ficaste a olhar-me enquanto me afastava dela, os seus trincos bem cerrados com toda a minha roupa lá dentro, os meus sapatos, os meus perfumes, as revistas e inclusivé os meus rascunhos. E nada disseste. Viraste costas a nada. No dia seguinte, deitei-me sobre a cama como se me compusesse uma vez mais. Os olhos fecharam-se-me por volta das onze e trinta, não olhei mais para o relógio a partir daí. Continuo acordado, a pensar como será ter uma mulher que me pesa nas pálpebras, e por isso ainda me olhas, por detrás do vidro. Desligo a televisão. Desapareces.

terça-feira, julho 15, 2003

As costas.




Hoje � como que se tivesse acordado e continuasse a dormir. Foi estranho. Entrei no comboio a uma hora que n�o � habitual, sentei-me num lugar que � o habitual e fiz exactamente os mesmo gestos dos quais ganhei h�bito: sentei-me, coloquei o p� l� no apoio que existe por detr�s de outro assento colocado na perpendicular, e deixe-me estar. Coloquei os headphones nos ouvidos, pus-me a ouvir a Comercial para variar - porque aqui s� se consegue sintonizar a Comercial - e comecei a jogar Snake II no meu telem�vel. Recebi uma chamada entretanto, mas n�o interessa. Fa�o isso para que n�o oi�a as vozes que por ali andam. Todos dizem qualquer coisa, n�o se podem sentar, n�o podem fazer aquela viagem sem dizer qualquer coisa. N�o conseguem estar calados - s�o atormentados, n�o aguentam o sil�ncio, tolhe-lhes os movimentos, ficam atrofiados dos m�sculos, ficam inertes, calados - enfim: como eu os quero. Come�o a mascar a chicla nesse momento - de mentol que � mais fresquinha - e mastigo conpulsivamente, de forma r�pida e fren�tica. N�o sei porqu� e at� agora ningu�m me perguntou porqu�, por isso n�o respondo. Entretanto, as esta��es passam e eu continuo ali, com o p� pousado no apoio por detr�s do assento verde colocado de forma perpendicular ao meu, onde outra pessoa entretanto se sentou. Vou passar a noite acordado, a ouvir vozes, muitas vozes, demasiadas vozes, demasiadas palavras, demasiadas entoa��es.. torna-se estranho ouvir as pessoas, elas a falar e eu a ouvir, elas a dizer e eu a entender. Eu a entender. Por isso � que por vezes as pessoas desistem de entender: porque s�o demasiadas palavras a serem ditas, ou porque s�o demasiadas pessoas a diz�-las. Mas estando sentado tamb�m n�o � possivel evitar que falem comigo. Por isso viajo sozinho, por isso n�o gosto de encontrar pessoas conhecidas quando viajo: porque a� existe a obriga��o de falar, n�o porque eu me sinta incomodado com o sil�ncio - por vezes at� o prefiro - mas porque a outra pessoa poder� sentir-se. E, �s vezes - mas s� �s vezes - �-nos necess�rio preocuparmo-nos com as outras pessoas, com outra pessoa, connosco qui��.
E assim me ponho a pensar em mim, porque viajo sozinho. Ponho-me a pensar em tudo, desde o momento em que acordei, ponho-me a pensar no dia anterior, na semana anterior, no ano anterior, na vida anterior, em tudo anterior a agora, a aqui, a neste momento. E por isso se esgota, para depois se tornar anterior, um momento anterior a este. Por isso penso nele, porque � o anterior, e porque eu o quero aqui, anterior mas presente, pr�ximo, mas sempre anterior.
J� me doem as costas e ainda nem cheguei. D�i-me a pele, os ossos, as m�os, os olhos. E d�i-me porque me desenham, desenham-me as costas enquanto a pele me arde. Enquanto tu me ardes directamente na pele, nos dedos ou em tudo o resto que, naquele momento, estava demasiado escuro para que pudesses ver. Mas esse momento, como eu disse, acabou. � o anterior. Chegou o anterior, o momento que acabou. � anterior e por isso o quero aqui, presente mas anterior.
Acabou-se-me a viagem anterior, e d�i-me a pele interior porque tu est�s aqui. E tu d�is-me na pele.



segunda-feira, julho 14, 2003

Voltei agora a casa. Tudo é estranho a partir deste momento, quando se olha e a parede sustém marcas de um
cristo pegado à parede. É como que se essa presença que não quero ter no meu quarto se estagnasse e sobre ele se vissem outras coisas que eu não consigo ver, que ninguém que trago ao meu quarto consegue ver. Tenho o cigarro no cinzeiro, agora está no meu dedo e impede-me de escrever. Arroto pelo lanche. Ponho o cigarro na boca e empino a face para cima, para não ser importunado pelo fumo. Visões estranhas saem de dentro dele, homens e mulheres estranhos, pintados, como uma névoa no dia de hoje que chove. A estrada estava molhada - recordo-me - e já nem sei como vim aqui parar. Lembro-me de tudo, de tudo o que disse ou o que fiz e já não sei mais porque o fiz, nem sei mais o que fiz ou o que ficou por fazer. Existe algo que ficou por fazer, existem palavras que deixei no banco de trás daquele carro, os estofos quentes, a minha pele suarenta contra o tecido, transpirava, espirava, inspirava, morri. Deixei-me para sempre enterrado naquele banco, deixei-me como o sabor de tabaco na boca, como o cheiro do orgasmo que se cola ao sexo e ao umbigo depois de te ter desejado, mais e mais. Não sei mais o que pensar depois de tudo isso. Este é o primeiro dia e já não sei o que fazer com ele, ou o que ele pode fazer comigo. Coço a barba que cresce - fi-la há dois dias, estava rente, quase que não se via, na altura, mas agora já cresceu - agora já se nota. E quando lhe passo a mão, é como se me acariciasse, como tu fazias dantes, antes dos nossos corpos renegados se terem rendido ao silêncio que rodeava aquele espaço, aquele banco de trás daquele carro. Estava calor, apesar de chover, apesar do céu enevoado. Apesar das nuvens, apesar das pingas de água que caíam à nossa frente, apesar da minha mão molhada na tua, apesar de muita coisa. Daqui a algum tempo, quando eu souber que partiste, não mais estarei aqui. Partirei, também, para onde não sei. Será como nas películas, como nas fotografias que não tirámos quando passámos por aquele Photomatic, onde iríamos preservar-nos como nunca antes o fizeramos - e como não chegámos a fazer. Passámos rapidamente, recordo, como se fosse quente aquele banco onde nos podíamos ter sentado, onde podíamos ter olhado o flash, o quarto flash antes de ficarmos ali, eternizados, eternamente juntos, patéticos, dizias. Mas eu nunca ouvi o que tu dizias, e por isso estávamos ali. Por isso passámos rapidamente, a luz a diminuir e nós a andar para cima, para a estação, sem sequer olhar para aquele máquina. E sim, o meu rosto queimou-se naquela máquina. No dia seguinte fui lá, sozinho, pensando que tu estarias onde não sei, mas não ali. Fui lá sozinho, suportei o flash sozinho, eternizei-me sozinho, e tu morreste. A minha mão pegava na tua, não ali, mas pegava na tua. Os meus lábios estavam mordidos, pendiam deles pequenos frémitos que aqui deixaste antes de ires para onde não sei. Ainda hoje não sei, e já passaram tantos anos, tantos séculos, tantos dias e noites e camas e lençóis e calores e frios. Tudo isto passou, tu não.


Hoje é o primeiro dia. Pensei em dizer aqui muita coisa daquelas que não servem de nada mas que ficam muito bem. Pensei em criticar alguém, dissecar a minha opinião sobre alguma coisa que ocorreu ontem mas a verdade é que ontem estive demasiado cansado para pensar nisso. Outro dia penso nisso. Outros dias existem muitos.

E, para começar bem o dia (sim, acordei tarde):


Uma quase-entrega-imaterial.



Quando partires, às cegas, pelas veias da cidade,
encontrarás quem de mim diga que estou vivo, ou
o contrário.

E quando o fizeres, ver-me-ás, sozinho, de rosto
estampado nos quadros da parede, com as pálpebras
cerradas sobre o meu peito.

Escreverei cartas como se te desenhasse a cada palavra,
o vento voará por mim sem que o impeça, e tocar-me-ei pela
noite dentro, imaginando que estás por aqui.

De hoje em diante, cerro a porta do quarto
para que não entres - tenho a certeza de que te convidei,
um dia, mas já não estou certo.

Apagarei cigarros em frenesim, como páginas soltas
de memória ou como lumes brandos nas copas das árvores -
imaginei tudo isto enquanto dormias, nos teus sonhos
em que o corpo era uma massa volúvel, insana
e vermelha.

Hoje já é manhã - a esta hora já acorda quem por
mim não passa. Não durmo para que, ao chegar aonde tu
estás, possa ser uma surpresa ou desilusão - como
uma marca no peito, como um soluço de água quando
a noite cai.

Para isso estou hoje aqui, para que me entregues e
para que morra. Pela penumbra, espalhei fotografias
e luas luminescentes que olho e que gasto com a minha
saliva, como o selo desta carta.

Na minha pele ainda jaz o teu bafo quente de
quando acordavas e de quando eu te via - às escuras, nua,
pelo quarto herege e quente. De dentro dos lençóis emanava
a voz que, aos nossos corpos, se assemelhava a uma
religião, a uma quase-entrega-imaterial.

E, por não te ter, me retiro para países onde o sol se
ponha e onde os olhos não me ardam. Para que me possa solver
no meio das multidões, onde alguém fala, onde ninguém me
conhece - como uma palavra.

E em línguas estranhas me defino no livro que
escreves, dia após dia, onde te recordas, onde deixas
latente quem eras ou quem serias se, por aqui, as giestas
fossem calmas e se o teu corpo se enlevasse - à altura do meu
peito surgem marcas, os teus dedos estão queimados e a
pele nada mais é que um perfume mastigado onde
não estás mais.



Sérgio Xarepe