Pesquisar neste blogue

domingo, fevereiro 29, 2004

Não sei de cór todas as imagens que trouxeste. Tenho apenas por dentro das mãos um suor frio do tempo em que surgias de rompante, através de névoas e corpos de outros que não conhecia. É esse teu rosto tão petiz que se me cola no peito quando todas as ruas parecem estar no fim, e quando a espera se assemelha a um tempo inútil, obsoleto. De qualquer forma, tenho-te inesperadamente no cansaço dos meus olhos e vejo-te, à distância, circunscrevendo no tempo a minha vontade de te dizer que, a nós, nada mais resta senão a velhice lado-a-lado.

sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Sei que, de dentro de nós, várias coisas se ressalvam: temos a perfeição dos dias como algo normal e constante. Não imagino o tempo quando tu não estás e, por ora, apenas os teus olhos a surgirem em cortinas de água me empalidecem os sentidos - poucos - que tenho, ténuamente disfarçados de neblina. Sei que existe sempre um momento em que fugimos das palavras, sem pensar onde nos iremos antever; sem saber que iremos ter em nós a certeza de que, algures por essas ruas, onde o nosso espiríto um dia se confluíu, estão rasgos da nossa pele que então incandesceu por nós afora: as nossas vozes coladas nada deixaram transparecer. O medo era algo como uma aparição desmedida, as noites sucediam-se com ritmos estranhos e melancólicos. Dávamos por nós a olhar o tempo escoar pelas frestas da janela, junto da chuva que nada trazia do verão que um dia conhecemos. - E agora ? - dizias. Sei que não te respondi de imediato, sei que as nossas mentes, ao sentirem a madrugada em uníssono, seriam meras consequências do sono que a velhice indubitavelmente nos trazia. Mas agora, no final de tudo, olho-me: estou cansado, os cabelos tenho-os crispados por todos os rostos que descrevi; as mãos, trémulas, estão apoiadas nos meus quadris como que a servirem de ombreira para a posição estranha do meu corpo: a mesma que sempre tive enquanto te desvio o cabelo e te vejo ter-me.

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

Sei que nada se contrói rapidamente, ou que as mãos não tremem por razão nenhuma. Sei a exacta forma como acordas, como os teus olhos se encontram no lençol branco e como o teu corpo se contorce em redor do meu. E tenho em mim esta percepção inócua, plana: simples. Sei que ainda é cedo para que pela rua surjam fogueiras cujos corpos se arrastam pela multidão: será como que dizer aos rostos as horas que o corpo já não conhece. E de todas as maneiras que existem para olhar, esta é a mais perfeita. Tudo porque o teu peso me circunda e circunscreve à tona da água; isto porque, onde tu estás, existe o mundo a movimentar-se em círculos estranhos e periféricos, e as minhas mãos são sobejos de palavras mal adormecidas: ou de fugas-previstas-à-nascença.
De toda a minha pele, salientam-se pequenos traços de sangue, pequenos sorrisos em forma de ave, asas a crescerem pelas mãos que tu tocas sem saberes, ao acordares serena com a tua inocência a sobrepôr-se a tudo aquilo que os teus lábios libertam; comigo ao lado.

domingo, fevereiro 22, 2004

Inês.

Dizem que é um mundo louco, este onde tu surges. Sei que espero por ti em qualquer sítio onde esteja, seja no fim de uma rua, na cama, em redor das casas, dos rostos. Não existem palavras grandes o suficiente para te dizer tudo aquilo que deixaste nas minhas mãos, com sabor a despedida-curta. E esse sabor irá ganhar sentido e irá crescer como um nome completo, quando voltares e eu te for buscar. Ouço a mesma música repetidas vezes, e assomam-se-me à vista faces familiares .. a infância distante. Não me viste criança, não me viste crescer e mesmo assim, eras tu que me acompanhavas. Lembro-me de todos os aniversários, todos os natais e toda a importância que então tinham os meus olhos, por vezes limpos, outras vezes cristalinos mas sempre: distantes. E eis que então me aproximei deste mundo que apelidam de louco. Hoje, um dia mais tarde do que o devido, onde ninguém me conhece, sei que todo o peso das cidades se ergue durante a noite, quando eu sonho ou quando te procuro. Um dia soube que estavas a chegar, hoje sei-o novamente. E todos os sons que algum dia conhecerei não conseguirão dizer com o mesmo sorriso todo o amor que sai dos teus lábios.


"Reparou então que o tremor das mãos, aquele suor frio que se
lhe brotava da pele, os pêlos arrepiados por todo o seu corpo,
tudo isso - era a felicidade que chegara, sem avisar." - A varanda sobre o mar , Sérgio Xarepe.

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

O amor é uma ferida escondida nos nossos livros de infância, onde aprendíamos a ler os traços da nossa pele: onde nem sequer imaginávamos o que viria a acontecer. Sei que estou quieto e preso no mar baço onde as minhas mãos se destroem: o dia está pesado por demais, a minha pele de super-herói já não se cura tão rapidamente. Sei que te disse que iria estar sempre aqui; sei que disse que, enquanto dormisses, te iria guardar o sono. Perdoa mas falhei. quando cerrares os olhos, não estarei mais lá: quando acordares e colocares o teu braço para o lado direito da tua cama - onde se estendem as tuas imagens do mundo - não será o meu corpo que irás sentir: apenas o lençol. Estarei longe, ou perto - tanto faz. Estou por demais cansado, sabes? De nada me vale correr o mundo a salvar vidas, a salvar-te de algo que me iria para sempre preencher com um espaço demasiadamente branco e disforme para o conseguir compreender. Talvez o tempo tenha sido curto para te dizer tudo aquilo que as minhas mãos não conseguiam soletrar. Sempre te disse que tinha jeito para a escrita, mas ela não me alimenta, ela não me ama - e assim te acompanha. Vejo-vos partir. nada mais resta para fazer senão colocar-me religiosamente por cima de lençóis escuros onde consigo vincar o teu nome completo sem que, mesmo assim, ele cresça e ganhe a tua forma.

Se acordares assustada, chama-me: curar-te-ei o medo do escuro com o peso dos frascos que trago rente às costas.

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Fumo o último cigarro antes do trabalho suave de me esquecer. Os dias multiplicam-se de uma forma abrupta e gélida. O sol raia, mas tal é invísivel. O nosso corpo demolha-se nas águas do cais. No sal da pele. Sei que os corpos se transportam de uma forma maleável, esponjosa e triste: a minha boca esgota-se, sobressaem-se-me de dentro os mapas que me dizem que nunca hás-de conseguir. Tudo aquilo que já tiveste já não existe: as ruas desapareceram em derrocadas do espírito, as minhas mãos são hoje pedaços de metal fundido com fumo de tabaco a esfumar-se e a colorir-me. Não serei mais nada daquilo que desejaste. Nem um dia destes, nem hoje. Sei que as palavras assumem contornos pesados nestas alturas, e o silêncio assemelha-se-me à forma perfeita de te dizer tudo aquilo que as nossas noites não deixaram. Espero que te lembres, e espero que consigas recordar-me inteiro quando, de manhã, esperares o alimento para o teu cansaço. E quando o tempo da primeira refeição chegar, sei que terás a certeza de que não há mais nada, e de que o meu silêncio me substítui hoje, a teu lado, na tua cama larga demais.
Ainda não me separei de ti. Sei onde estás e, como te disse: estás onde eu não posso ir. Já houve dias em que julguei que não voltasses aqui, e outros dias passaram e não sei sequer se estiveste por estes lados. Apesar de tudo isso, o silêncio é uma pedra rosácea, pouco mais que os teus lábios matutinos. Julgava eu que a forma como tu acordavas era a mais deslumbrante e livre de mácula: afinal, até eu erro.
E tudo isto porque hoje adormeço sem o teu peso nas minhas costas. E o meu chapéu de chuva, esse: onde ficou ?

domingo, fevereiro 15, 2004

Tenho a imagem ténue dos caminhos a desaparecerem no meio das multidões e o meu corpo a alastrar-se, a concentrar o cansaço no meio das pálpebras. Sei que nas cidades paira o fantasma absoluto do silêncio que os amigos receiam, e em redor desta cárcere perdem-se asas de fogo: escondem-se no peito de quem abriga o fantasma do amor - e nele se anulam. Sobrevoam-me, através das horas, os passos perdidos pelos rumos deste mundo - janelas de água abrem-se a meio da noite - e a despedida torna-se inevitável. Eis que, ao fim de muito tempo, me despeço de tudo aquilo que não cheguei a conhecer. Passo rapidamente por caminhos escuros por onde não sei mais ir, movo as pedras para outro planeta - houve dias em que o meu abrigo era feito de lume.
E sei que recordas a minha maneira de sair do teu quarto apagado, sei que me movo com velocidade característica das aves de rapina que agoram me laceram o corpo. Cortaram-me as costas, esvai-se-me o sangue pelas hostes dos olhos - uma lâmina exangue e casta onde todo o teu nome se multiplica e cresce. Como a tua pele nos meus lábios.
Despeço-me .. encandeio a iluminura e todas as cidades deste hemisfério se concentram nas minhas mãos - outrora jovens. Despeço-me por fim, dos amigos a quem não dei tempo suficiente para se descobrirem. Sei que, de hoje em diante, não haverá mais nenhum espaço entre nós e a consciência: não me busquem, estou cansado. Irei em frente a partir do momento em que nada mais haja para escolher. A calma rodeia-me, os amigos rodeiam-me e prendem-me aos seus párpados. Deles não guardo nem o sabor, do meu sangue sinto apenas o peso que me deixa por dentro do peito, espalhado pela boca . enredado nas minhas dilacerações do mundo. E, por fim, deixo-te, com tudo o que ficou por dizer. A perfeição é-nos díficil de esquecer, lembras? A minha viagem começou no momento em que não te deixei desaparecer do meu caminho, no momento em que a rua se tornou por demais pequena para que ambos a transpuséssemos. Assim nos cruzámos e deixámos que a noite fizesse o resto. E o resto éramos nós, eram os nossos corpos enrugados febris e enlaçados na ebriedade do verão. Deparáva-se-nos a imensidão dos dias, longos dias, e sempre nos viamos de uma forma inócua, e sem sequer abrirmos os olhos. Porquê? Porque te escondias na vastidão das minhas pálpebras, a febre conspurcava-me os sentidos e vergava-me então à tua noção de silêncio. Aquele que partilhámos tantas vezes sem que o mar irrompesse pela nossa voz. E tu pesas-me, sem teres notado cresceste de uma forma desmesuradamente doce e temo que, dentro de mim, nada mais haja para além de tarefas massivas e repletas de automatismos. A minha doença não é essa: é os meus olhos terem nomes que não conheço e que não sei como mudar; é ter, dentro de mim, vários rostos para desenhar, várias vozes que teimo em deixar marcadas com tons de sangue e cinza; a minha doença consiste no cansaço que se me deposita de cada vez que acordo, com espaço a mais nestes lençois carpidos em fogo.
Esta é a minha hora, a mesma que tardou em chegar, e assim se faz com que as mãos deixem de ter utilidade, e os amigos desaparecem para os lugares distantes onde se escondiam. Tenho ainda as tuas photographias, a tua incandescência ladeada pelos tons escuros do meu rosto: do meu cabelo árido e trémulo. Deixa que os filhos se me deparem em qualquer parte. Deixa-me dizer-lhes o quanto lhes vou sentir a falta por dentro da pele, a preencher-me os espaços vazios que a tua partida inevitávelmente criou.


sábado, fevereiro 14, 2004

Sei que os dias acabam de uma forma súbita. E mesmo assim estarei perto, de uma forma que nem tu julgaste ser possível. Sairei no meio da noite para um país qualquer longínquo, onde nem eu tenha sabor: onde respirar se torna desnecessário. Existem em mim marcas incandescentes de vozes, de risos desmesurados e de sombras tão grandes como as minhas mãos - cortadas - e febris. Preciso de voltar a casa, e sei que em mim já não há espaço suficiente para que todas as memórias influam, se destruam , copulem. E sem chegar, sem ver todas as photographias que tirámos, ficarei da mesma forma: ausente, levemente triste, suavemente apático.
Hoje vejo de uma forma espectacularmente ébria. O meu corpo pesa-me, a minha roupa alarga-se à medida que caminho e sei que será demorada a minha forma de te sentir. Escrevo cartas quando estou distante, queimo papéis sem linhas quando te vejo, desfocada, leve. Já não tenho a mesma certeza de te ter sob a pele, a pulsar e a respirar como se de um filho se tratasse. Não consigo fazer-te sobressair por entre imagens - o peso da infância. Lembro-me de como eras, de como o teu peito se me assemelhava a um destino com abrigo eterno onde eu me escondia das palavras. Hoje, as minhas mãos estão cansadas e o sangue escorre-se-me pelas unhas, como que em suplício pela torrente que me queima os cabelos e o cansaço.
Cheguei a tempo, antes de partires. Apesar de não me ter despedido, sei que sabes que eu estava lá, onde tu tinhas o teu corpo pré-disposto a viajar e a fugir. E neste momento, não há mais voz nenhuma que dance pelo resto do mundo, não há mais qualquer perfume ou sabor de pele que me recorde de ti. Hoje é um dia a seguir a ontem, amanhã será um novo dia igual a tantos outros e, de qualquer modo, tenho a exacta maneira de te prender a este chão caiado de insónia e de cansaço. Vou sair, daqui a instantes, do lugar onde nascemos e onde vimos os filhos nascerem. Neste momento, já são velhos com cabelos brancos e eu permaneço eterno. As minhas mãos sobressaiem quando te tocam no rosto, quando o teu cabelo se junta ao sol de inverno e ao vento fresco que nos traz a audácia de quem descobre. Os nossos corpos tocam-se de uma maneira que nem tu sabes descrever. De que me valem as palavras hoje? De que me vale o número dos dias se, mesmo assim, partiste? Não sei mais quando te irei desenhar pelas ruas da cidade, mas sei que hoje os candeeiros se apagam, e os meus incêndios se fluem no epicentro do teu rosto que se despede de mim.

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

Daqui a dias, irás para onde eu não posso estar. Sei que, nesse dia, não terei tempo nem espaço: não possuírei dentro de mim a forma exacta de te procurar, por todos os lugares onde te conheci. E tenho, hoje, a certeza inócua de que voltarás, e de que eu estarei à espera, a olhar pela janela, de uma forma relaxada, inocente - talvez até seja inesperado. Tu lembras-te do dia em que te esperei. Esse tempo já lá vai, mas talvez essa prática nos possibilite criar caminhos onde eles antes não podiam existir: onde antes não havia oxigénio .. ou filhos desenhados.
Tenho em mim o peso de quem se deixa levar pela grandeza das coisas simples, pelo simples olhar para cima e ver algo indescrítivel, inclusivé para alguém cujas palavras descrevem o impossível - como eu disse: até para mim as folhas acabam. E essas ninguém as pode fabricar, construir, medir ou desenhar em nenhum sítio ou sonho ou desejo.
Sei que estou doente e a minha cura perdura na sua distância, mas o meu corpo - este mesmo que conheces tão bem - já hoje não me responde. Obedece tão-somente a ele próprio. Fugazmente. precipita-se para todos os disfarces que comigo se deparam pela rua, num dia estranho onde ninguém é o que costuma ser, e onde a tua imagem tende a diluir-se.
Hei-de curar-me, e estarás lá tu para me responder e dizeres que voltaste.

terça-feira, fevereiro 03, 2004

Faithfulness.

Há coisas que estão destinadas e que nós não conseguimos, nunca, retirar de dentro de nós. Existem quartos cuja imagem se assemelha por demais àquilo que um dia imaginámos, estando o nosso corpo pousado, a dormir ou a deixar passar o tempo. E nas cortinas que fecham a luz, que a impedem de entrar, existe um cheiro de maresia e de passado. Fartas em desenhos, estão as paredes que conseguem confinar o sono à sua forma mais original e bruta: os olhos fechados, como que enclausurados dentro da sua própria rigidez, e o resto do corpo ... absorto ... de tudo o resto. E é assim que se formam os mundos. Formam-se geadas dentro da pele, temos alergias a tudo o que vive em redor, e não olhamos sequer para aquilo que adormeceu dentro de nós. E eis que, ao fim de alguns anos, tudo isso desperta novamente, e as intempéries que rodearam a casa desaparecem, desformam-se: morrem. Sei que sou tóxico, não tenho nenhum truque que me permita surgir onde não me esperam mas tenho de mim a idéia de que eu, algures dentro do chão, escondo fotografias que disse que não iria nunca ver, que nunca me permiti tirar, não com outrém. Existem rastos de luz dentro das mãos, não tenho sombra hoje porque o meu peso já me ultrapassa a vontade, e o corpo já está por demais lancinado para que consiga caminhar, calmamente, até ao fim da rua, onde tu estás: e eu deixei de o saber.
Deixámos a procura para os mais velhos - a nossa caminhada prende-se no que não há-de chegar, naquilo que não procuramos e que, quando chega, não vemos chegar. E talvez por isso eu saiba, hoje, que nunca o procurei, durante muitos anos, e que por fim acabei por não encontrar.



Foi isto que nunca soubeste ?