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domingo, fevereiro 15, 2004

Tenho a imagem ténue dos caminhos a desaparecerem no meio das multidões e o meu corpo a alastrar-se, a concentrar o cansaço no meio das pálpebras. Sei que nas cidades paira o fantasma absoluto do silêncio que os amigos receiam, e em redor desta cárcere perdem-se asas de fogo: escondem-se no peito de quem abriga o fantasma do amor - e nele se anulam. Sobrevoam-me, através das horas, os passos perdidos pelos rumos deste mundo - janelas de água abrem-se a meio da noite - e a despedida torna-se inevitável. Eis que, ao fim de muito tempo, me despeço de tudo aquilo que não cheguei a conhecer. Passo rapidamente por caminhos escuros por onde não sei mais ir, movo as pedras para outro planeta - houve dias em que o meu abrigo era feito de lume.
E sei que recordas a minha maneira de sair do teu quarto apagado, sei que me movo com velocidade característica das aves de rapina que agoram me laceram o corpo. Cortaram-me as costas, esvai-se-me o sangue pelas hostes dos olhos - uma lâmina exangue e casta onde todo o teu nome se multiplica e cresce. Como a tua pele nos meus lábios.
Despeço-me .. encandeio a iluminura e todas as cidades deste hemisfério se concentram nas minhas mãos - outrora jovens. Despeço-me por fim, dos amigos a quem não dei tempo suficiente para se descobrirem. Sei que, de hoje em diante, não haverá mais nenhum espaço entre nós e a consciência: não me busquem, estou cansado. Irei em frente a partir do momento em que nada mais haja para escolher. A calma rodeia-me, os amigos rodeiam-me e prendem-me aos seus párpados. Deles não guardo nem o sabor, do meu sangue sinto apenas o peso que me deixa por dentro do peito, espalhado pela boca . enredado nas minhas dilacerações do mundo. E, por fim, deixo-te, com tudo o que ficou por dizer. A perfeição é-nos díficil de esquecer, lembras? A minha viagem começou no momento em que não te deixei desaparecer do meu caminho, no momento em que a rua se tornou por demais pequena para que ambos a transpuséssemos. Assim nos cruzámos e deixámos que a noite fizesse o resto. E o resto éramos nós, eram os nossos corpos enrugados febris e enlaçados na ebriedade do verão. Deparáva-se-nos a imensidão dos dias, longos dias, e sempre nos viamos de uma forma inócua, e sem sequer abrirmos os olhos. Porquê? Porque te escondias na vastidão das minhas pálpebras, a febre conspurcava-me os sentidos e vergava-me então à tua noção de silêncio. Aquele que partilhámos tantas vezes sem que o mar irrompesse pela nossa voz. E tu pesas-me, sem teres notado cresceste de uma forma desmesuradamente doce e temo que, dentro de mim, nada mais haja para além de tarefas massivas e repletas de automatismos. A minha doença não é essa: é os meus olhos terem nomes que não conheço e que não sei como mudar; é ter, dentro de mim, vários rostos para desenhar, várias vozes que teimo em deixar marcadas com tons de sangue e cinza; a minha doença consiste no cansaço que se me deposita de cada vez que acordo, com espaço a mais nestes lençois carpidos em fogo.
Esta é a minha hora, a mesma que tardou em chegar, e assim se faz com que as mãos deixem de ter utilidade, e os amigos desaparecem para os lugares distantes onde se escondiam. Tenho ainda as tuas photographias, a tua incandescência ladeada pelos tons escuros do meu rosto: do meu cabelo árido e trémulo. Deixa que os filhos se me deparem em qualquer parte. Deixa-me dizer-lhes o quanto lhes vou sentir a falta por dentro da pele, a preencher-me os espaços vazios que a tua partida inevitávelmente criou.


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