Pesquisar neste blogue

sábado, junho 05, 2004

Escrevíamos cartas através da nossa juventude, as distâncias tornavam-se imperceptíveis e quase abstractas às nossas mãos. Tenho o hábito de sentir, torneando os lábios, uma vontade imensa de descrever todas as horas, aquelas poucas horas, que separam o que tinha de ti e o que não cheguei a escrever. Talvez o lugar para o qual tenhas ido seja em redor das pálpebras que eu hoje cerro - ou que deixo entreabertas: tanto faz. Sei que o teu corpo é estéril, sagaz em momentos de pressão ou de amor. Sabias que, a esta larga hora, não existem quaisquer rostos nítidos o suficiente para que os recorde? Aparte o peso dos ventres que abandonámos, existe a tristeza de manter à distância todos os amigos que um dia ousámos ter. Existe um ponto em que a nossa pele se concentra nos ombros nos braços ou nas falanges para que nos salte à vista - ou ao paladar - o sabor que países longínquos que engolimos nos trazem de outrora. Rodear o corpo de objectos inúteis à partida parece ser o modo como a transparência dos dias se nos assoma: à janela, apenas o esgar de loucura dos outros que não conhecemos e que, eventualmente, acabarão por desaparecer. Olhamos o fundo da rua, atravessa-nos à vista a imagem do mundo ténuamente embebido em gritos de «adeus» e de «até já» e tomamos noção de que nada sabemos desse gesto esquecido. As coisas que fazíamos tornam-se improváveis de acontecer, o mover do corpo torna-se difícil devido ao peso que adquiriu por ver partir de si filhos com destinos cruzados e intermitentes; temos para nós a certeza de que algures, num qualquer outro dia, nos chegará a factura de coisas que deixámos para trás nas imensas viagens que planeámos e que nunca sairam de debaixo dos lençóis. E repetem-se nos braços os olhares anodizados pelo abandono daqueles que conhecíamos e que não voltaram a escrever.

Sem comentários: