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quarta-feira, agosto 27, 2003

Estás a chegar.

Estás a chegar. Sei que estás a chegar porque, ao olhar da minha janela para a lua ou para qualquer outro planeta que se aproxime, para qualquer outro silêncio que venha até aqui, te sinto. E sei que estás a chegar perto. Sei que, durante a madrugada, irei ter contigo até um sítio qualquer, quiçá longe daqui, talvez na cidade mais próxima, não sei, mas irei ter contigo de qualquer modo. Chegarei lá, olhar-te-ei, e será como se fosse a primeira vez, as pernas tremerão novamente, e a minha pele e todo o meu corpo irá, de alguma forma, dizer o teu nome. Não sei como o há-de fazer mas sei que, nesse momento, quando, ao fim de tantos dias e de tantos silêncios, tantas coisas imaginadas, tanta coisa dita: sei que aí me ouvirás. Estou a fumar, sim, perdoa. Sei o que me faz mal, mas também sei que o sabor de todas as noites, mescladas nos meus lábios, irá fazer-te voltar. Estarei aqui, onde estou agora, à espera, como se nada mais existisse. Como se nada mais houvesse a esperar. Sei que chegarás porque te ouço, porque te vejo, a tua silhueta espalhada pelo quarto, o teu perfume ao som da minha música, os meus papéis a desenharem-se sozinhos, como se algo inóspito, invísivel, algo nosso, estivesse aqui. Não consigo responder a nenhuma pergunta, só espero que chegues. Não sei pronunciar as palavras da mesma forma que me ensinaram, ano após ano, não sei mexer-me, gesticular, bocejar ou inclusivé, deixar-me estar quieto, sossegado, a ouvir-te chegar. Vejo faróis pela rua, a estrada que hoje secou após chuvas que nunca mais tinha ouvido cair. São reflexos que deambulam, embrulho-os no fumo do cigarro, consigo por fim mexer a boca, sentir-me, deliciar-me com o sabor da noite sem espelhos, sem candeeiros. Tardas em chegar. Acho que chegou a altura de me redimir de tudo isto, de todas as histórias que escrevi e que apaguei, de todos os rostos que desenhei durante a noite e que, momentos depois, apagava. Hoje chorei, sabias? Nada de preocupante, o meu corpo cresce ao mesmo tempo que as minhas cicatrizes, e algumas delas já nem saram, algumas simplesmente se deixam ficar, espalhadas pelo meu corpo como um mapa de um qualquer país longínquo que nunca hei-de conhecer. Não lhe sei o nome, ou outra coisa. Nem ele sabe o meu. Nem eu sei o meu nome. Ajudas-me? Gostaria de, um dia que fosse, um momento, em qualquer que fosse o local, a hora, o dia, o ano; gostaria, mesmo assim, que me dissesses como me chamo. Aí, irás saber tudo o que eu próprio esqueci, tudo aquilo que fiz força para enterrar. E agora já me consigo mexer. Talvez estejas a chegar, já. Olho para a rua, não se nota diferença: os mesmos faróis a agitarem-se pela estrada semi-molhada, os mesmo candeeiros luminescentes a trovejarem pelas casas adentro, e na minha vejo silêncio. Na minha casa, nas minhas paredes, enterram-se textos, desenhos, mãos, vozes cheiros corpos memórias poemas mortos. Abaixo da terra, estão os meus pés, como que se de uma raíz se tratassem. Como se as melodias fossem outras, e a mim a vontade não fosse a de me deixar estar quieto, enclausurado, à espera que chegues. Sei que sabes o caminho, várias vezes to ensinei: não sei se te recordas de estar contigo na praia, a fazer desenhos na areia com os dedos, com os meus dedos. Recordo-me que o quero. E continuarei a querer, mais e mais, por aí em diante, até que chegues. Não serei mais a criança que viste nascer. Não me tornareis mais alto, mais sensato e nem os meus cabelos envelhecerão, à medida que espero - as minhas mãos começam a ganhar peso na gravidade, mas não deixarei de desenhar, de escrever, de morrer. Não consigo parar o tempo, não posso fazer mais do que estar aqui, a pensar nas luzes dos automóveis lá fora que rasgam o asfalto húmido, nos barulhos de quem vai lá dentro, ou do peso suportado pelos candeeiros onde, tantas e tantas vezes, me deixei nascer. Estarei aqui, já to disse, não sei quando. Estarei aqui para quando voltares, e estarei à tua espera. Não sei de onde vens, como vens, se dormes, se comes, se pensas em algo que eu não consigo imaginar. Doem-me os olhos. Estou a ver-te, agora: estás debruçada sobre o meu colo, como uma cria de pássaro, o cabelo a gesticular palavras estranhas aos meus dedos, a pele a tilintar-me os sentidos, o teu cheiro a espalhar-se pelo ar, a entrar-me pelas narinas, pelas mãos, pela boca, pelos sentido todos que tenho - e enquanto te acaricio. Estou no mesmo sítio ainda. Não me mexi. Deixei de me conseguir mexer novamente. E o cigarro já não arde ao canto da boca, nem os lábios continuam secos como antes costumavam ficar. Estou a perder-me dentro destes livros todos que me rodeiam, dentro de todas estas imaginações que nada sabem de mim. Atravesso pontes e desfiladeiros sem o reconhecer, prendo-me a pedaços de homens que cavalgam por serras sem nome para que chegue mais rápidamente a qualquer sítio, porque um dia te disse que sei onde estás, e que irei ter contigo. Mas, agora, tudo é diferente: notas, nas minhas mãos, alguma gota de cansaço? Será velhice, dormência, falta de hábito? Existem copos mais saborosos que a minha pele, neste momento. Está salgada como água, fria ao toque, ao gesto, ao sabor e, ao agora olhar-me, vejo, enfim: estás quase a chegar. Passou-se algum tempo, não sei quanto - não conto o tempo - desde que aqui cheguei. Faltas tu. Este espaço está vazio por demais. De quando em vez, animais visitam-me durantes os sonhos que crio para me ocupar. São como famílias numerosas: vêem como me espalho pela maré, e como sinto o pôr-do-sol a mergulhar no rio. Sim, é lindo. Sei que é dourado este brilho que vejo, além das janelas secas e poarentas. Ainda falta algum tempo para que se molhem, o dia de hoje foi somente um presságio pouco eficaz. Porque, mesmo assim, continuarei a querer ir ter contigo à praia, desenhar na areia palavras indescrítiveis, daquelas que saberás, concerteza, decifrar. Bastará olhares para mim. Será fácil. Criar o tempo - sem contá-lo - sempre foi fácil. Iremos criá-lo para nós, não teremos de ir para outro sítio porque alguém se incomoda connosco. Teremos sempre o nosso espaço/tempo guardado, dentro de nós. Terei sempre, a meu lado, uma caixa de madeira, ornamentada com figuras que não conheço e que decerto terão significado. e tê-la-ei sempre perto de mim. Apenas para que possa guardar todas estas palavras que vão surgindo de rompante, sem que ninguém note, pelo meio do silêncio, enquanto espero que chegues.

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