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sábado, junho 26, 2004

Imperfeições.

Os corpos destoam da restante cidade à medida que nos apagamos em silhuetas fictícias e contundentes. Trago nas mãos tão-somente o aspecto dúbio e amargo do vácuo que se nos toma. Os rostos são ausentes, afastam-se à medida em que me relembro das mãos, da sua presença sã, quase ináudivel.

Imaginas a fome do mundo ?

Tenho em mim o peso dos retratos que hoje já não querem dizer nada: tenho as imagens que me restaram aquando do surgimento da tua voz. Misturava-te na multidão para que sobressaísses e para que, ao longe, os teus sorrisos se insurgissem em tons de apatia - apenas as paredes possúem a descrição mais fiel da loucura dos outros. Afasta-se a doença à medida que a curo, distancia-se das páginas amarelecidas onde, algures, foi possível ver-te e saber quem eras.

Hoje, não há nome que te chame.

E as coisas inúteis teimam em colocar-se na mala, pronta para a partida deambulante em redor das ruas, das faces ofuscadas pela cadência frenética do amor - a mesma - que tão-bem conheces.

Tens para ti os rostos das crianças ?

Sei que te invadem as manhãs, com o volume dos dias a aninhar-se por debaixo dos quadris, com a boca a coadunar-se com o restante espaço demasiadamente-pouco-ocupado; resta a febre a descair por dentro das molduras, resta a infância a julgar-se mais do que o que realmente é. E apenas os gritos dos excessivamente-jovens que brincam na rua nos recorda de onde estamos , o que fazemos.

Sabes como partem aqueles que conheço ?

Vagamente, crescem por dentro de nós as imensas descrições dos quartos que deixámos intactos: assemelhamo-nos a ventres vazios e adjacentes às ruínas do primeiro-andar, onde se nos esgotaram as formas de esquecer o mundo - e que ele existe.

Para todos os que permanecem, existe um nome: por ora sigiloso. E haverá uma hora , de entre todas as outras que podíamos ter escolhido , em que o teu corpo te recordará o ínfimo pedaço de pele que lhe falta para que o lado sagrado do teu coração se apazigue.





sábado, junho 05, 2004

Escrevíamos cartas através da nossa juventude, as distâncias tornavam-se imperceptíveis e quase abstractas às nossas mãos. Tenho o hábito de sentir, torneando os lábios, uma vontade imensa de descrever todas as horas, aquelas poucas horas, que separam o que tinha de ti e o que não cheguei a escrever. Talvez o lugar para o qual tenhas ido seja em redor das pálpebras que eu hoje cerro - ou que deixo entreabertas: tanto faz. Sei que o teu corpo é estéril, sagaz em momentos de pressão ou de amor. Sabias que, a esta larga hora, não existem quaisquer rostos nítidos o suficiente para que os recorde? Aparte o peso dos ventres que abandonámos, existe a tristeza de manter à distância todos os amigos que um dia ousámos ter. Existe um ponto em que a nossa pele se concentra nos ombros nos braços ou nas falanges para que nos salte à vista - ou ao paladar - o sabor que países longínquos que engolimos nos trazem de outrora. Rodear o corpo de objectos inúteis à partida parece ser o modo como a transparência dos dias se nos assoma: à janela, apenas o esgar de loucura dos outros que não conhecemos e que, eventualmente, acabarão por desaparecer. Olhamos o fundo da rua, atravessa-nos à vista a imagem do mundo ténuamente embebido em gritos de «adeus» e de «até já» e tomamos noção de que nada sabemos desse gesto esquecido. As coisas que fazíamos tornam-se improváveis de acontecer, o mover do corpo torna-se difícil devido ao peso que adquiriu por ver partir de si filhos com destinos cruzados e intermitentes; temos para nós a certeza de que algures, num qualquer outro dia, nos chegará a factura de coisas que deixámos para trás nas imensas viagens que planeámos e que nunca sairam de debaixo dos lençóis. E repetem-se nos braços os olhares anodizados pelo abandono daqueles que conhecíamos e que não voltaram a escrever.

quinta-feira, junho 03, 2004

Diz-me, então: de que vale ter as mãos ocupadas por objectos que, a meio da noite, deixo de reconhecer? Sei que pinto a casa com retractos imensos e que em nada melhoram o aspecto da incerteza do teu destino. Lembro-me das imensas viagens que fizeste e lembro-me de quando voltavas: e existia um momento onde ambos se imiscuíam: quando o teu rosto se me assomava e os gestos se tornavam pesados e quando, a dada altura, já os meus dedos torpes mesclavam o sabor árido das coisas-sem-sentido.


Deixarei, à porta, um rosto do qual te lembres para que saibas que aqui será o início do silêncio que as minhas palavras deixam por existir.

E de onde surgirás, quando te envolverem os traços da loucura?

De onde as crianças partem, apenas os meus corpos rasurados se prestam a envelhecer: isto porque, de onde o meu rosto surge, apenas restam as fotografias autografadas de um vulto que julguei ser o teu.